PUBLICAÇÕES Histórias Reais Como Encontrei a Força para Perdoá-los
Poderia ter sido diferente. Talvez eu tivesse escolhido o caminho mais fácil, o óbvio.
Mas, com o apoio que recebi, consegui enfrentar o mais desafiador de todos: perdoar. E foi nesse ato que encontrei a força para seguir o caminho da fé, um caminho transformador que mudou tudo.
Acredito que muitas pessoas ainda não compreendem o verdadeiro sentido da vida, nem sua conexão com a eternidade. Por não enxergar o básico, elas se agarram ao presente de forma desesperada, vivendo o "hoje" a qualquer preço, sem se importar com o próximo ou com as consequências. No fundo, é uma questão muito mais complexa, mas a maioria acaba perdida por falta de conhecimento e pela descrença no mundo espiritual, vendo-se sempre como vítimas das circunstâncias.
Certo dia, acompanhado por outros comparsas, um indivíduo sem escrúpulos decidiu roubar e espancar um senhor de meia-idade, visivelmente alcoolizado e incapaz de se defender. O homem foi encontrado inconsciente, caído na calçada, e levado ao hospital como indigente, em coma profundo. Felizmente, um médico dedicado, comprometido com sua missão de salvar vidas, encontrou meu telefone e me ligou, informando que meu pai estava em estado crítico e precisava ser transferido para um hospital com UTI. Naquela época, eu não tinha recursos, e os principais hospitais do estado estavam em greve, superlotados, com pacientes espalhados pelos corredores.
Saímos eu, meu tio e meu pai em uma velha Fiat Fiorino, enferrujada e praticamente caindo aos pedaços, que o município utilizava como ambulância. Fomos de cidade em cidade em busca de uma vaga de UTI, até finalmente chegarmos ao hospital São Lucas, em Vitória-ES, onde o motorista da ambulância nos deixou. No caminho, meu pai teve uma súbita melhora e acordou. Segurou minha mão e me pediu para nunca usar minha arma para tirar a vida de ninguém, apenas em legítima defesa, como último recurso. Naquele momento, ainda não era policial, mas entendi que meu desejo de seguir essa carreira se realizaria, e que precisava mudar minha forma de ver a vida. Até então, ainda acreditava na equivocada ideia de que "bandido bom é bandido morto".
Ao chegarmos ao destino final, não havia vagas disponíveis, e a única opção era esperar em um dos corredores superlotados. A cada momento, chegavam pessoas gravemente feridas, vítimas de acidentes ou de violência, com mutilações e fraturas múltiplas, atingidas por facas ou armas de fogo. Enquanto aguardávamos, ajudei as enfermeiras a lidar com pacientes de difícil movimentação, pesados ou em crise. Observava meu pai ter crises de convulsão, causadas pela atividade anormal do cérebro devido aos coágulos de sangue em seu crânio. Em um momento, vi uma pessoa andando pelo corredor, aparentemente bem, até que começou a jorrar sangue de sua veia jugular. Ele havia se envolvido em uma briga de bar, estava alcoolizado, e logo depois, assisti médicos e enfermeiros suturando seu ferimento. Ouvi os profissionais comentando que, devido ao nível de alcoolemia, ele não responderia bem à medicação durante o procedimento.
O tempo foi passando e as crises do meu pai só pioravam. Desesperado, procurei ajuda de uma médica, que me atendeu de forma fria e ríspida, dizendo que era ela quem decidia quem estava morrendo, e que, se eu não estivesse satisfeito, que levasse meu pai no meu "carrinho" para morrer em outro hospital, pois somente ali havia neurocirurgião. Fiquei atônito diante daquela reação, vinda de alguém preparada para salvar vidas e lidar com crises. Mas, no fundo, ela era uma pessoa comum, cheia de falhas como qualquer outro ser humano em evolução nesta terra. Provavelmente estava no limite, enfrentando o caos de um hospital público superlotado e sem recursos. Eu não podia julgá-la, mas também estava no meu próprio limite: meu pai agonizava no corredor, eu não tinha um centavo no bolso, muito menos um carro para levá-lo. Exausto, sem esperança, saí esbravejando do hospital e me sentei, desolado, na calçada. Poucos minutos depois, duas viaturas chegaram. Não sabia o motivo, mas imaginei que poderia ser por minha causa. Seja por mim ou não, os policiais providenciaram a remoção do meu pai para o hospital da Polícia Militar. Embora o novo hospital também não tivesse os recursos necessários, meu pai foi tratado com dignidade e respeito, algo que ele merecia naquele momento tão delicado.
Meu pai passou algumas semanas internado naquele hospital, e, devido à falta de tratamento adequado, ficou com sequelas permanentes. Ele omitiu a verdade para me proteger, evitando que eu buscasse vingança. Aqueles foram tempos conturbados na minha vida; eu já não acreditava na existência de Deus ou em qualquer forma de justiça divina. Perdi a esperança nas pessoas e passava os dias planejando como poderia exterminar os criminosos da região.
Meu pai era sargento da Polícia Militar e, quando eu tinha seis anos, me ensinou a manusear e usar as armas que mantinha em casa. Ele me mostrou como defender nosso lar na sua ausência sem precisar tirar a vida de ninguém—bastava abrir a janela e disparar contra o chão para afugentar os perigos. Ele prometeu que, aos 18 anos, me daria uma garrucha calibre .22 de dois canos, mas acabou se desfazendo dela muito antes disso. Era um homem de extrema honestidade, com princípios rígidos sobre educação e caráter.
Eu conto mais sobre essa fase da minha vida no texto “O dia que a arma falhou e ninguém entendeu o porquê”, publicado no site cativar.org. A verdade é que tanto ele quanto eu passamos por reviravoltas em nossa maneira de pensar e de lidar com a vida. No lugar da arma, ele me presenteou com uma grande e bela Bíblia de capa dura, cheia de ilustrações e artes, datada de 1974. Dentro dela, havia páginas reservadas para recordações do serviço militar, precedidas pelas seguintes palavras:
“Preparai-vos e portai-vos como valentes, prontos a lutar amanhã cedo contra estas nações coligadas para nos arruinar e destruir o nosso santuário. É preferível morrer no combate, que ver o extermínio do nosso povo e do nosso santuário.” (1 Macabeus 3:58, 59)
Nesse mesmo espaço, havia uma carta escrita à mão pelo meu pai, datada de 28 de fevereiro de 2002. Gostaria de compartilhar com vocês alguns trechos importantes, que acredito serem essenciais para nossa compreensão:
“Meu querido filho Rafael, os dias passam e a cada momento sinto que o mundo tomará novos rumos. Ligo a televisão e vejo grandes autoridades e poderosos trancafiados na cadeia. É um novo tempo que se aproxima. Ao final de um túnel na escuridão surge uma luz. Nenhuma RELIGIÃO salva, mas a nossa vida direcionada à essa luz, nos conduzirá até a DEUS. Os mistérios de Deus e o segredo da vida chegarão aos poucos até a nós ao encontrarmos a esta luz. Rafael te presenteio esta Bíblia como símbolo desta luz. Não use esta luz para que os outros te veja. Seja humilde. Não use esta luz para cegar os olhos dos outros para que chegue antes, com intuito de ser o primeiro, mas para ajudá-los na caminhada. Esta bíblia me acompanhou por muitos anos, existem páginas destinadas a registros, use-as. Nelas há locais para registros de sua futura e importantíssima passagem pelas forças armadas. Nos quarteis existem capelas e capelães, que são oficiais que se formaram padres. Quando sentir perseguido, injustiçado, humilhado, procure ter os Salmos. Quando for o primeiro ou considerado o melhor em alguma coisa, não fique vaidoso, pois o primeiro poderá ser o último no dia seguinte e o melhor ser o pior. [...]” (Vanderli Machado Lacerda, carta manuscrita, Nova Venécia - ES, 2002)
De fato, essa bíblia era especialmente destinada a militares, com espaço para registrar suas jornadas nesta vida, muitas vezes marcada por dificuldades. No entanto, ela passou por uma situação que desafiou toda lógica. Em um dia que marcou profundamente nossa história, tivemos que abandonar nosso lar por medo. Meu pai, em crise psicológica devido às constantes perseguições e punições injustas que sofria na Polícia Militar, havia entrado em um ciclo de sofrimento que minava sua paz e afetava sua relação conosco. A frustração de ver sua carreira estagnada, com seu sonho de ascender ao oficialato destruído, o tornou explosivo e violento em casa.
Nesse fatídico dia, em meio ao seu desespero, ele amontoou alguns pertences no quintal, envoltos em cortinas, e ateou fogo. No meio da fogueira, jogou a bíblia. No dia seguinte, angustiado com a situação do meu pai, voltei à casa e, ao revirar os restos da fogueira, encontrei a bíblia. Para meu total espanto, ela estava intacta, sem um único sinal de dano. Naquele momento, tive a certeza de que não era apenas um livro comum. Ela se tornou uma prova viva da presença e proteção divina, algo que nem o fogo conseguiu destruir.
Os anos se passaram, e, inacreditavelmente, o "raio" caiu novamente no mesmo lugar. Um grupo de criminosos espancou meu pai até acreditarem que haviam tirado sua vida. Ele foi encontrado mais uma vez caído, ensanguentado e inconsciente. Naquela época, não havia SAMU ou Corpo de Bombeiros na região, então tudo recaía sobre a polícia. Os policiais que chegaram ao local julgaram que era apenas mais um caso de embriaguez e o levaram para casa, deixando-o caído na garagem, em vez de levá-lo ao hospital. No dia seguinte, um vizinho viu meu pai ainda caído e o socorreu, mas seu estado era grave e ele precisava, novamente, de uma UTI.
Após ser informado pelo hospital, providenciamos sua remoção para Colatina/ES, onde havia mais recursos. Ele passou por uma cirurgia para remoção de coágulos no cérebro e ficou alguns dias na UTI. Pude visitá-lo, mas ele não tinha consciência de onde estava; achava que estava em casa. Apesar de estar ligado aos aparelhos, com o crânio aberto e coberto por curativos cirúrgicos e gazes, ele sorriu para mim, transmitindo uma paz e felicidade incomuns. Nos dias que seguiram, apresentou uma melhora significativa aos olhos da equipe médica e foi transferido para um quarto. Contudo, era uma daquelas melhoras que a espiritualidade nos concede para a despedida. Quando ele partiu para o plano espiritual, eu não estava presente, mas minha última lembrança é dele sorrindo para mim no leito da UTI.
Tentei absorver tudo o que estava acontecendo e manter o foco em algo novo. Em meio à dor e aos sentimentos de vingança, consegui dar um passo adiante: iniciei e concluí o curso técnico de automação industrial e controle de processos. Fui até selecionado para trabalhar em uma grande fábrica de celulose, mas a crise financeira global impediu minha contratação e resultou na demissão de metade dos trabalhadores da indústria. Para me sustentar, trabalhava como ajudante de motorista em uma empreiteira a serviço da Petrobras, enquanto, nos momentos livres, estudava incansavelmente para entrar no Exército ou na Polícia Militar. No entanto, em todas as tentativas, algo estranho acontecia: durante as provas, era acometido por um mal súbito que me impedia de alcançar a pontuação necessária. Busquei ajuda médica especializada, mas sem sucesso.
A situação piorou quando comecei a sentir dores intensas nas mãos e nos pés, que apresentavam manchas avermelhadas e latejantes, uma dor comparável à de martelar a unha. Ninguém conseguia identificar a causa, e nenhum exame ajudava no diagnóstico. Desesperado, voltei-me para a religião, buscando respostas na fé. Frequentei a igreja católica e evangélica, e apesar de tentar entender o que estava escrito na Bíblia, o verdadeiro sentido das palavras parecia sempre me escapar.
Foi então que mergulhei na literatura espírita e comecei a encontrar respostas para todas as questões que antes me pareciam incompreensíveis, respostas fundamentadas na ciência, filosofia e religião. Embora tenha encontrado uma síntese clara de muitas dessas respostas no Livro dos Espíritos, foi ao ler O Evangelho Segundo o Espiritismo que as palavras de Jesus de Nazaré começaram a fazer sentido em minha vida.
Com muito estudo e dedicação, passei a entender parcialmente o porquê do sofrimento e o verdadeiro propósito da vida neste mundo tão complexo e cheio de desafios. Esse entendimento me trouxe uma nova clareza, permitindo-me compreender profundamente o significado da frase: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32).
Apesar de ter conhecido a verdade, as dores e dificuldades nas provas continuavam. Foi então que compreendi que não bastava apenas saber, era preciso viver e praticar os ensinamentos que havia adquirido. Era necessário transformar minha maneira de pensar e agir. Só quando comecei a internalizar a real necessidade do perdão, da compaixão e do amor é que minha jornada começou a mudar. Passei a me colocar no lugar dos outros, compreendendo suas limitações, especialmente em relação às verdades de Cristo. Com isso, ganhei forças para perdoar aqueles que tiraram a vida do meu pai.
Ao purificar minha alma, substituindo o rancor e a vingança pela compaixão e o perdão, finalmente consegui conquistar meu objetivo de ser aprovado no concurso da Polícia Militar. Acredito firmemente que essa mudança de mentalidade, por misericórdia divina, foi o que me permitiu seguir por esse caminho tão desafiador sem perder de vista o meu propósito. Deus, em sua infinita sabedoria, me poupou de um sofrimento ainda maior por meio dos mecanismos de sua criação. Esse entendimento me deu forças para enfrentar os desafios que viriam na vida militar.
“De ordinário é muito fácil adotar-se uma conduta nova quando deslumbrado com as informações espíritas a respeito da imortalidade do ser e as múltiplas diretrizes que constituem verdadeiro paradigmas doutrinários. No entanto, toda e qualquer construção exige esforço, abnegação e trabalho contínuo, e os resultados nem sempre se fazem de imediato.” (Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, 2023, p. 186)
Dizem que o tempo cura todas as feridas, mas a verdade é mais complexa do que isso. O passar dos anos, seja nesta vida ou na eternidade, não é suficiente por si só. Se a pessoa não buscar o autoconhecimento e o aprimoramento espiritual, dificilmente entenderá a lógica das leis universais, como a lei de causa e efeito, ou o funcionamento da justiça divina. Sem esse entendimento profundo, o perdão raramente será alcançado de forma genuína. E sem essa base, será difícil enfrentar novas situações que exigem compaixão e perdão, fundamentais para amar aqueles que, de alguma forma, nos feriram.
Muitas situações terríveis marcaram minha vida, a maioria envolvendo a Polícia Militar. Desde a destruição do nosso lar até humilhações e episódios que beiraram a tortura durante o treinamento. Enfrentei criminosos que tentaram me matar em plena via pública, cercado por uma multidão de pessoas que viviam na miséria e sobreviviam mantidas pelo tráfico de drogas. A multidão fazia algazarra e zombava enquanto éramos alvo de agressões físicas, pedradas, pauladas e disparos de armas de fogo. Em meio ao caos, uma pessoa foi atingida, estando cerca de 50 metros atrás de mim. A vítima foi levada para dentro de uma casa, onde filmaram uma encenação, alegando que ela havia sido atingida enquanto estava abrigada durante o confronto. Essa manobra desonesta causou danos incalculáveis à nossa imagem e reputação, com nossa exposição negativa sendo amplamente divulgada pela televisão e internet. Sofri agressões de indivíduos alucinados por drogas ou em crise psicológica devido a passados traumáticos. Também vivi a falta de respeito de pessoas da alta sociedade. Foram inúmeras as vezes em que tive que testar minha própria consciência para não sucumbir, e nem sempre consegui evitar. No entanto, sem uma base sólida, certamente não estaria aqui escrevendo este texto. Em vez disso, provavelmente estaria num túmulo, sofrendo espiritualmente pelas escolhas infelizes que poderia ter feito.
Não posso deixar de afirmar que, mesmo para aqueles que se dedicam a praticar os ensinamentos de Cristo, haverá momentos de grandes tribulações. E, especialmente para os que se comprometem a divulgar a verdade do Criador, as provações se tornam ainda mais desafiadoras.
Comumente os trabalhadores do Cristo sofrem perseguições atrozes, são instigados nos momentos de fraquezas a retornarem aos velhos hábitos malsãos de forma a dificultar sua evolução moral e paralisar ou prejudicar os trabalhos de alto valor espiritual. Como diz Joanna de Ângelis, tal situação exige seriedade, renúncia e outras necessidades.
“Ser fiel até o fim é o sublime desafio nesta hora de dificuldades, na qual te encontras atendendo ao convite do Senhor. Também Ele viveu esses desafios que te perturbam, somente que em momento algum deixou de confiar no Pai e a Ele entregar-se totalmente” (Divaldo Franco pelo espírito Joanna de Ângelis, 2023, p. 188)
Sigamos em paz, confiantes nos desígnios do nosso Pai de Amor e Bondade e em Seu Filho, Jesus, com a certeza de que o perdão nos liberta das amarras do ressentimento, permitindo-nos seguir amando e sendo amados.
Nova Venécia-ES, 18 de outubro de 2024.
Muita paz,
Rafael Cremasco Lacerda
Referências:
DIVALDO FRANCO pelo espírito JOANNA DE ÂNGELIS, Mundo Regenerado, 1. ed, Salvador - BA, 2023, cap. 29, p. 186 e 188.