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O dia que a arma falhou e ninguém entendeu o porquê

Era só mais um dia cinza, cheio de preocupações e aflições em minha infância mais que turbulenta. Não poderia imaginar que seria meu último dia nessa terra, nem que tudo mudaria de forma tão repentina e violenta. [...]

Vivia com meus pais em uma casa simples, comprada com o sacrifício do trabalho de meu pai como policial militar. Homem de padrões rígidos de educação, criado e educado em um tempo que não havia espaço para choro e lamentações, apenas trabalho, suor e dedicação. Minha mãe de igual maneira aprendeu desde cedo a cuidar dos afazeres domésticos e auxiliar na criação dos irmãos. Éramos uma família típica da época, o homem trabalhava e sustentava a família e a mulher dedicava-se aos afazeres do lar, cuidando dos filhos seguindo os padrões rígidos da época.

Naquela época, o policial era respeitado mais pelo temor do que por sua autoridade. Passavam por treinamentos que, até hoje, são chamados de “adestramento” - o mesmo termo usado para animais. Esses treinamentos exigiam suportar dor, fome, sede, cansaço físico e desgaste emocional, com pouca ou nenhuma aplicação prática para os problemas reais da sociedade. Assim como hoje, exigiam deles controle emocional e respeito que não encontravam dentro dos quarteis, eram humilhados e desrespeitados, no entanto, tinham que tratar a todos com respeito e educação. Basicamente o adestramento consistia em discipliná-los pela dor, incutindo em suas mentes que sofresse menos quem aceita as regras impostas pelos superiores. Lidavam diariamente com a morte, suportando as cobranças da sociedade e carregando o peso das falhas do Estado. A polícia nunca deixou de ser usada para controlar a insatisfação popular por meio da força, a pretexto da lei e da ordem, comandada por políticos e grandes empresários (ricos e poderosos), cumpriam ordens sem questionamento para não serem presos por desobediência. Até hoje não podem expressar nem suas opiniões, um direito fundamental. Eram odiados por muitos, que não compreendiam suas limitações, nem a responsabilidade que cabia aos demais setores da sociedade. Pela falta de compreensão, transferiram a responsabilidade a quem não caberia resolver os problemas da origem da violência.

Os governos corruptos, sedentos por poder e dinheiro, não tinham compromisso social e apenas usurpavam os direitos do povo, oferecendo pequenas doses de esperança para ludibriar os desafortunados de toda sorte. A população, com o tempo, se tornava cada vez mais ignorante e alienada, enquanto a criminalidade crescia. A polícia passou a tomar para si as dores da sociedade, fazendo justiça com as próprias mãos, socorrendo enfermos e acidentados, combatendo incêndios, recolhendo animais na pista, investigando crimes, ouvindo as dores da população sem poder ou recursos para ajudá-los. Assumiram um peso maior do que podiam carregar, o peso da miséria social, das mortes que não puderam evitar e das vidas que, equivocadamente, tiraram em nome da lei e da ordem.

Nada funcionava como deveria, mas alguém precisava ser culpado pelos erros do governo. E quem melhor para isso do que aqueles que estavam na linha de frente usando a força para manter a ordem, circulando diariamente com viaturas reluzentes nos bairros de periferia, onde morava a maioria dos eleitores desinformados? Sim, foi mais fácil culpar a arma do que o agressor, assim jogaram a culpa do uso da força na polícia eximindo o governo de suas responsabilidades para com o povo.

Poderia escrever centenas de páginas falando das injustiças e sacrifícios enfrentados pelos policiais, no entanto, nenhuma palavra poderia fazer o simples leitor a entender tamanha dor desses homens. Somente quem vivencia pode de fato entender o sofrimento.

A história de vida de meu pai foi de luta em todos os sentidos, após aproximadamente vinte e oito anos carregando o fardo insuportável de ser policial no Brasil, ficou doente e emocionalmente desequilibrado. Tomado por fortes emoções, das quais não poderia mensurar ou descrever, fez uso de medicamentos controlados e embriagou-se em um bar próximo de casa. Em estado de total sofrimento, retornou para nossa casa e dirigiu-se ao carro que estava parado na garagem. Era mais um dia daqueles que tentamos impedir um fim trágico sem sucesso, apelei para que não saísse de casa naquele estado, porém sem sucesso algum. Entrou em seu Fusca amarelo e saiu desajeitadamente pela garagem apertada. Ao tentar sair de marcha ré, um dos portões de grade fechou-se prendendo o lado direito do parachoque dianteiro do veículo, no entanto não foi o suficiente para impedi-lo de sair. Em fúria, acelerou o veículo até sair quebrando as barras de ferro que prendiam o veículo. Naquele dia, não demorou muito até que outros policiais o trouxessem para casa nos dando a notícia que ele havia sofrido um acidente de carro. Nada o impediu, nem o portão e nem o choque com o canteiro central da Avenida Guanabara, que apenas fez o veículo andar em duas rodas por alguns metros até a retomada da posição normal. Mais tarde tivemos a notícia que ele, ainda dentro do veículo compactado pelo acidente, teria tentando tirar a própria vida com a arma de trabalho, momento que foi impedido por populares que o socorreram.

Tomado por dor e delírio, gritava, pedindo ajuda ao "demônio", recusando socorro médico. Havia fraturado seis costelas e apresentava ferimentos pelo seu corpo. Todos estavam com medo dele, inclusive os próprios policiais que o deixaram em casa. Rogando em silêncio a Deus por ajuda, aproximei-me lentamente do sofá da sala, onde ele estava sentado. Via seu rosto desfigurado, era nítido que ali não era mais meu pai, havia uma força terrível que o manipulava de alguma forma. Semelhante a uma cena de filme em câmera lenta, vi meu pai sacar sua arma da cintura e apontá-la em direção a minha cabeça. Naquele instante recordei do dia em que havia me dito que se algum dia eu retornasse para casa com um pirulito que não fosse meu, iria dar seis tiros em minha cabeça espalhando meus miolos para todos os lados. Não tinha dúvidas quanto a sua coragem e disposição de matar, porém de alguma forma tinha fé que não seria nosso fim, havia algo que me dava força e coragem para permanecer de pé a sua frente, mesmo estando indefeso fisicamente. O mundo espiritual sempre esteve muito presente em minha vida, desde recém nascido, a começar pelo meu nome, mas isso ficará para um outro texto.

Naquele momento, não me restava dúvida de que a arma apontada para mim estava completamente carregada e pronta para disparar. Eu já compreendia o básico de seu funcionamento e podia ver as munições brilhando no tambor. Essas observações podem parecer incomuns para uma criança, mas, aos seis anos de idade, meu pai já havia me ensinado a manusear e utilizar suas armas. Ele acreditava que isso seria essencial para meu futuro como policial e para garantir nossa segurança em sua ausência.

Com olhar desesperador de sofrimento e sem hesitar apertou o gatilho da arma. Naquele instante o tempo parou para mim, parecia o fim da minha fé, o fracasso da justiça divina e o fim de uma existência sem sentido até aquele momento, no entanto, a primeira munição não deflagrou.

A matemática era simples, havia mais cinco munições restantes que poderiam funcionar na primeira tentativa, e ainda assim, todas poderiam deflagrar nas próximas tentativas, no entanto, uma a uma falharam sucessivamente. Diante do fracasso e tomado pela perturbação emocional e espiritual, ele arremessou a arma na minha direção. Consegui desviar, e a arma caiu perto dos meus pés. Como se, subitamente, recobrasse a consciência diante de uma tragédia iminente, ele desabou em um choro incontrolável.

Seria o trágico desfecho de uma família dilacerada pela dor e pela incompreensão das armadilhas do mundo espiritual — invisível aos olhos físicos, mas real e constante em nossas vidas como espíritos imortais.

A todo momento somos sugestionados pelo mundo espiritual. A depender da frequência vibracional que emitimos em nosso estado de espírito, nos sintonizamos, conforme nossas afinidades de pensamento e sentimentos, com espíritos de igual semelhança. Isso define a quem estamos nos associando diariamente, recebendo sugestões positivas ou negativas, por isso Jesus asseverou que devemos orar e vigiar nossos pensamentos para continuarmos seguindo o caminho correto. De mesmo modo, ele falou com Simão para continuar olhando para ele e tendo fé, acreditando que seria possível caminhar sobre as águas turbulentas do mar revolto. Disse isso para fortalecer sua fé, pois sabia que se desviasse o pensamento do propósito seria bombardeado por pensamentos negativos que fatalmente iriam incapacitá-lo de atingir seu objetivo. Jesus sabia que o mal age em nossas mentes através de nossas fraquezas criando embaraços de difícil correção, que fatalmente nos adoecem por inteiro. Então o primeiro passo é ter fé, para isso precisa ter coragem para acreditar em si e no criador. No meu primeiro texto falei que o primeiro passo é um ato de coragem, e de fato é, pois sem coragem não temos fé. Estamos no período político das eleições municipais e a mídia fala o tempo todo do Pablo Marçal, candidato a prefeito da cidade de São Paulo, que criou vários cursos, inclusive comediantes fazendo piadas de um suposto curso dos sete passos para o primeiro passo, apesar de cómico, de fato o ser humano precisa de orientação para sair do lugar e muitas vezes para dar o primeiro passo precisa de um preparo mental e espiritual, um tanto complexo aos aprendizes da fé raciocinada.

A bem da verdade, esperamos sempre por milagres de Deus sem nos darmos conta que o nascer já é um milagre, que vidas são salvas de diversas formas a todo instante. Será que alguém acreditaria num milagre de Deus se contasse que um menino pegou todas as munições da arma do pai, enquanto ele dormia, e colocou-as de molho em um tanque de lavar roupas, poliu uma a uma com sabão, esponja de aço e pasta de dente até ficarem reluzentes como espelho para deixar seu pai alegre e que isso salvou suas vidas no dia seguinte? Talvez sim, mas seria mais fácil acreditar se Jesus tivesse aparecido na frente da arma e impedido o pai de atirar, no entanto, Deus age a todo momento através da espiritualidade que nos guia e protege, nos dado direcionamento nos momentos difíceis de aflição, conforme nossa permissão, respeitando nosso livre arbítrio. Então é preciso pedir ao Pai, só assim ele virá em nosso auxílio sem desrespeitar a nossa vontade, caso contrário a vida seria um roteiro de filme do qual teria, começo, meio e fim pré estabelecidos e nenhum mérito teríamos.

Esse, como tantos outros, foi um dia de milagres incompreendidos através de sucessivos “erros” do universo. Quem diria que uma criança precisaria aprender a usar uma arma de fogo aos seis anos de idade para conseguir manuseá-la com certa segurança e ter a “brilhante” ideia, porém necessária, de lavar as munições em um tanque de lavar roupas, e que tudo isso seria usado de alguma forma para o bem?

Não existem erros, há incompreensão dos planos divinos, pois nenhuma folha cai sem o consentimento do nosso Pai de amor e bondade. O que para nós soa como injustiça, pode ser resgaste de débito e correções do nosso passado delituoso do qual clamamos por reparação e justiça divina. Estamos sedentos por amor próprio, muitas vezes não conseguimos nos amar ou perdoar. No entanto, pedimos a Deus por perdão, mas não conseguimos nos dar o perdão. Por estarmos em estado de sofrimento, consciente ou não, entramos em um campo vibracional do qual abre canais de comunicação que facilitam as sugestões do plano inferior, que nada tem a contribuir com nossa evolução espiritual a não ser a prática da compaixão por eles, que julgam-se injustiçados pela justiça divina, perseguindo aqueles que de alguma forma buscam compreender e praticar os ensinamento de alto valor moral, vivenciados pelo Mestre Jesus.

Assim como eu, todos temos nossas histórias a contar, todos passam por tribulações nesta vida terrena, presos a matéria carnal. Aqueles que dedicam suas vidas no caminho do bem sofrem duras perseguições e provações para desistirem dos compromissos firmados no planejamento encarnatório. Não se iluda, assim como somos perseguidos pelos ímpios na terra, assim somos no plano espiritual. A bem da verdade, tudo se mistura, pois ambos os planos coexistem e se influenciam. Nesse sentido, os espíritos estão em nosso entorno, tanto os bons quantos os malévolos, encarnados na matéria ou fora dela. A questão é que não estamos isentos de suas investidas, portanto, devemos estar sempre atentos às sutilezas dos nossos irmãos sofredores, que na impossibilidade de nos induzirem ao erro, utilizam-se da sugestão para manipular aqueles mais próximos a nós com intuito de nos atingir. Não há outro caminho a não ser procurar entendimento e sabedoria para lidar com o mundo invisível, experienciando os ensinamentos do Mestre Jesus, nosso modelo e guia nessa terra. Ao passo que fortalecemos nossa sintonia com Deus Pai, aos poucos vamos vencendo nossas mazelas morais e dificultando as investidas do mal que nos cerca.

Muitas coisas aconteceram em minha vida das quais desafiavam a lógica racional ensinada na escola e faculdade, buscava entendimento na religião, mas não entendia exatamente o que diziam as palavras. As aparentes injustiças vivenciadas ao longo da vida fizeram-me questionar o porquê de tanta dor e sofrimento para uns e tanta abundância e “felicidade” para outros que nada faziam de bom pela humanidade. Foi uma longa jornada para começar a ter o entendimento necessário para compreender superficialmente as palavras de Jesus e a lógica por trás da justiça divina. A partir do momento que conseguimos avançar nesse progresso espiritual, passamos a entender a importância das experiências vividas na terra e quão valiosa é a vida, independente das condições que encarnamos, por mais sofrida que seja aos nossos olhos.

Até para escrever esse simples texto passei por diversas turbulência para desistir ou me atropelar nas palavras, espero que tenha conseguido passar uma mensagem de esperança e fé, que possa a partir de hoje crer que não existe erro na justiça de Deus e que nada poderá impedir o progresso do bem, assim como nada poderá parar a marcha inexorável do tempo que cura qualquer ferida da alma. Somente a verdade nos libertará.

Nova Venécia, 20 de setembro de 2024.

Sigamos em paz,

Rafael Cremasco Lacerda